terça-feira, 30 de junho de 2009

Capítulo 1 - parte 7

Quando a mãe do menino entrou no pátio, encontrou-o ainda sob o efeito daquele estranho acontecimento. As mães têm essa capacidade de aparecer sempre que os filhos estão em apuros. São quase tão eficientes quanto os anjos da guarda, mas acabam se dispersando dos cuidados com as crianças graças às tarefas outras da vida das mulheres.
- O que houve, meu filho? - perguntou ela.
- Eu caí do muro, mãe, lá no vizinho – respondeu Guilhermei.
- Você se machucou, filho? - perguntou com a voz já alterada pelo medo.
- Não, mãe, ele me segurou – respondeu o menino, apontando o dedo indicador para o céu.
A mãe sorriu, agradecida, sem suspeitar que ele falava a mais pura verdade. Sim, alguém havia segurado Guilherme e evitado uma queda que poderia ter se tornado o segundo acidente mais grave da infância daquela criança.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Capítulo 1 - parte 6

O fato mais marcante da vida do menino, no entanto, é do tempo em que o freqüentava sozinho. Foi numa tarde em que resolveu subir no muro que dividia o pátio com o terreno da casa à direita. Construído com pedras, o muro tinha uns três metros de altura e apresentava defeitos, com algumas pedras soltas e irregulares. O menino arteiro quis andar sobre o muro. Subiu e, ao dar os primeiros passos sobre as pedras, tropeçou, tombando para o pátio vizinho. O pavor inicial do tombo iminente foi substituído pela surpresa, quando percebeu que a queda fora suave e vagarosa, como se alguém o tivesse segurado e o pusesse suavemente no solo. Confuso e alegre, Guilherme subiu rapidamente no muro e voltou para a casa da avó, são e salvo.

domingo, 28 de junho de 2009

Capitulo 1 - parte 5

Mas a principal lembrança dessa casa enorme e misteriosa, como são as coisas para uma criança de quatro anos, é a de um fato ocorrido no outro pátio, o do pomar, que ficava aos fundos. Passando-se por uma estreita porta, que destoava de toda a grandiosidade da casa, chegava-se ao pátio maior. Calçado com pedras na entrada, guardava um galinheiro à esquerda e um pomar cercado de muros por todos os lados. Lá havia figueiras, pessegueiros, limoeiros, laranjeiras, abacateiros e outras árvores frutíferas, que faziam a alegria de qualquer criança. Depois que saiu da casa da avó para morar com seus pais em casa própria, Ghilherme retornava lá, por vezes, para visitar a senhora, agora acompanhado de um irmão. Em algumas dessas visitas, encontrava ainda um casal de primos, para diversões inúmeras no grande pátio do pomar.

sábado, 27 de junho de 2009

Capítulo 1 - parte 4

Nessa varanda também, fazendo arte, Guilherme sofreu seu primeiro acidente mais grave. Chovia e ele brincava de deslizar pelas lajotas lisas quando num impulso mais forte acabou trombando de cabeça nas cadeiras de ferro que cercavam uma mesa. Guardou na lembrança algumas cenas desse acontecimento. O pai esbaforido a buscar chinelos antes de correr com o menino para o carro, a mãe aos prantos, Guilherme com a testa sangrando, a avó querendo saber o que havia acontecido. Disso, ficaram quatro pontos na testa e a lembrança mais forte: a da mãe desmaiando no hospital ao ver Guilherme saindo com a cabeça enfaixada no colo do pai.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Capítulo 1 - parte 3

Passando mais uma porta, a casa se abria novamente. À esquerda o quarto das brincadeiras com Maria da Graça e o banheiro. À direita duas salas que iam até uma espécie de esquina, de onde viriam, a seguir, à esquerda, a copa, a cozinha, despensa e outras peças mais, que eram usadas de depósito ou como quartos para os peões da estância mais chegados quando vinham à cidade. Em frente uma segunda porta levava ao pátio interno. Era uma varanda em L à direita, onde apareciam as inúmeras portas das peças depois da esquina das salas e que cercava parcialmente canteiros recortados por passeios estreitos, uma espécie de trilha que formava um amigável labirinto. Lá no canto esquerdo ficava a garagem, com a caminhonete Chevrolet que não funcionava mais, que era separada dos canteiros por uma fileira de hortênsias até o muro ao fundo que dava para o outro pátio.
Nessa varanda, era comum encontrar tio Ivo, um peão mais chegado da família, moreno, de sorriso maroto sob o bigode fino, que sempre dizia a Guilherme:
- Você anda fazendo arte, menino.
- Eu não, tio Ivo - respondia ligeiro o menino.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Capítulo 1 - parte 2

A mãe não conseguiu leite para amamentar nenhum dos dois filhos. Guilherme foi amamentado por uma ama de leite negra, de quem não guardou a mínima lembrança. Mas nunca esqueceu de Maria da Graça, uma menina negra, de uns dez anos, que foi criada por uns tempos na casa. Levada, brincava com ele de fazer cócegas e guiava suas mãos pelo corpo dela, mostrando onde sentia mais prazer com a brincadeira. Tenho para mim que o menino já formava um instinto sensual nessa tenra idade porque buscava as pernas e o ventre da negrinha para tocar na brincadeira, ao que ela respondia sorridente:
- Aí, não...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Capítulo 1: O anjo da guarda - parte 1

A casa era antiga e enorme. Dessas que parecem guardar mistérios em seus recantos e abrigar fantasmas de um passado longínquo, almas que viveram, sofreram, mataram e morreram e que insistem em trazer essas desventuras para os que hoje vivem no mundo. Vista de frente, era cinza, com uma porta e três janelas de cada lado desta, com pequenas sacadas ao nível da calçada. A porta principal abria-se em duas folhas, dupla, enorme, e dava para um hall. À esquerda e à direita, os quartos da dona da casa, a avó do menino, e o do filho mais moço dela, o pai, João. Foi neste quarto à esquerda que Guilherme passou seus primeiros dias de vida, enrolado com os braços presos ao corpo por uma espécie de atadura, como recomendava o costume de tratar de bebês à época. Deve ter vindo daí a claustrofobia e o medo, que o menino conservou pela vida afora, de acordar dentro do caixão de defunto, sem luz, sem espaço para mexer os braços e sem a possibilidade de ser ouvido ao gritar por socorro.

Se um livro, escrito no inverno

A seguir, partes de um suposto primeiro capítulo de um suposto livro de ficção, supostamente escrito no inverno por um escritor impostor. Tão impostor que, em vez de criar um título original, acabou plagiando parte do título de um livro de Ítalo Calvino, que nem sequer leu: Se eu um cavalheiro, numa noite de inverno...

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Emoções

Do Tiago (Conversos sós...) para mim, poema que me trouxe imensa emoção de alegria.

A Fernando

existem dias em que o dia vira noite
e pára
às claras
o céu enegrece com frieza.

até o pombo
o pombo desdenha a praça
rejeita as migalhas
condena quem reparte o pão
e ataca.

assim
tais dias se passam
idênticos à fugacidade de um cometa
embora uma estrela cadente
se revele tranquilamente segura dentro de ti.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O jornalista, o chef e a modelo

A votação do Supremo Tribunal Federal, favorável ao Recurso Extraordinário 511961, que extinguiu a exigência de diploma de curso superior específico para o exercício da profissão de jornalista deu uma idéia precisa de como a atividade é considerada na mais alta corte do país. No voto do relator, ministro Gilmar Mendes, a profissão foi comparada não à Medicina, à Engenharia ou ao Direito, mas à Culinária. No voto do ministro Cezar Peluso, o jornalismo foi comparado a atividades como a de babá e a de modelo de passarela.

Já o ministro Carlos Ayres Britto afirmou que o jornalismo carece de uma verdade científica e, por isso, não pode ser comparado a profissões que exigem formação em curso superior. Os votos ignoraram 40 anos de existência de legislação (Decreto-lei 972/69) que exigia o diploma de curso superior específico para o exercício da profissão de Jornalista, como lembrou o ministro Marco Aurélio, único dos nove votos favorável ao diploma para jornalistas.

A votação ignorou também todo um esforço trabalhista e acadêmico-científico tão antigo quanto o decreto, perpetrado por jornalistas, cursos superiores, estudantes, professores e pesquisadores brasileiros. Exemplos desses esforços são a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação ((Intercom), o Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ) e a Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).

A questão agora é o que fazer com o resultado desses esforços diante da desregulamentação legal da profissão de jornalista. A resposta: aumentar os esforços para garantir a qualidade técnico-cientifica dos jornalistas, estudantes e pesquisadores e manter a luta contra as condições precárias de trabalho. A pesquisa sobre Jornalismo no Brasil vem aumentando gradativamente nos últimos anos, consolidando conceitos e teorias e ajudando a traçar os rumos da atividade. A Fenaj e os sindicatos estaduais, como o de Santa Catarina, têm recebido e encaminhado denúncias de más condições de trabalho.

Mas e os estudantes? Por que freqüentariam quatro anos de curso superior se o diploma não é mais necessário para o exercício do jornalismo? Porque esta foi uma decisão restrita à legislação. E a legislação nem sempre corresponde às práticas sociais. Nenhum tribunal deve decidir de que maneira as pessoas vão se realizar pessoal e profissionalmente. Assim, aqueles que se sentem vocacionados para o jornalismo devem procurar bons cursos superiores para o exercício qualificado da profissão. Assim como aqueles que se sentem vocacionados para a culinária ou seguem o padrão de beleza próprio das passarelas devem procurar o máximo de qualificação em suas atividades.

Há uma diferença, no entanto, entre jornalistas, modelos e chefes de cozinha. Que me perdoem Gisele Bünchen e o chef Alex Atala, mas jornalismo de qualidade é fundamental para o aperfeiçoamento da democracia e a promoção da cidadania. E exercer uma profissão comprometida com esses dois princípios exige mais do que bom gosto ou um corpo adequado ao circuito da moda.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Começar de novo

Um dia antes de entrar em greve, a perita do INSS me concedeu licença até dezembro. Quer dizer, nada de trabalho até lá. Aí então, o negócio é traçar algumas metas pessoais para não ficar ocioso demais. São elas, não necessariamente nessa ordem de prioridade:

- elaborar artigo para intercom nacional
- finalizar artigo do projeto 170 do IBES Sociesc
- participar de algumas bancas de projetos experimentais
- ler alguns livros importantes para a tese de doutorado
- preocupar-se o mínimo possível com horários
- não perder chance de passear e conversar
- dar atenção ao filhote e à esposa

E vamo que vamo, que o dia está lindo lá fora!

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O mundo e as pessoas

Nesses dias, tenho voltado minha atenção mais para as pessoas do que para as coisas. Parece pouco, mas não é. Essa mudança de perspectiva faz com que você dedique mais tempo - e mais memória até - para o que as pessoas fazem e contam, ao invés de ficar pensando nas coisas que tem que fazer ou adquirir.

Antes dos últimos acontecimentos, eu agia diferente. Absorto nos meus compromissos, relegava a preocupação com a maioria das pessoas às ocasiões em que elas estavam participando dos meus projetos de vida – do trabalho ao lazer. Fora disso, esquecia o que haviam dito ou feito.
É como comentou o Nasatto: “Acho que vivemos sempre em um limbo, pois quase nunca nos damos conta do que temos em mãos , seja tempo, amigos, trabalho, sonhos ou saúde.Vivemos em uma rotina que nos consome vagarosamente ao ponto de não nos darmos conta”.

É isso o que geralmente acontece, mas não necessariamente precisa ser assim. O melhor da vida diz respeito à capacidade de nos relacionarmos com outras pessoas e na qualidade desses relaciomentos. O que mais interessa no mundo é a gente que o habita.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A cabeça no lugar

Como manter a cabeça no lugar em situações radicais como essas? Tendo junto de você pessoas amadas e amigas. Minha mulher é incansável e tem cuidado de mim em tudo o que preciso, da comida aos médicos. Meu filho é uma força para lutar contra as dificuldades. É por ele que vou enfrentar e vencer as dificuldades do tratamento.

Um grupo de vizinhos e amigos se reúne diariamente aqui em casa para rezar pela minha cura e refletir sobre o sentido da vida a partir dos desígnios de Deus. Medicamentos seguram a onda da noite e aliviam dores. O trabalho deve ser mantido como forma de garantir a ligação com o mundo prático.

A espera pelo tratamento

Agora espero pelo tratamento dos nódulos – prefiro chamá-los assim porque parecem menos agressivos. Na semana que vem inicia a quimioterapia, com todas as suas possibilidades de efeitos colaterais. E devem iniciar também as sessões de radioterapia. Mudanças bruscas na vida de um sujeito, podem acreditar.

Uma cirurgia para distrair

As duas semanas seguintes foram vividas nesse limbo. O que distraiu foi a cirurgia para correção das vias biliares para o estômago, o que chamam de Y de Roux. Parte do estômago é retirada, complementado por um atalho do intestino para o novo estômago. Isso gera uma redução da absorção dos alimentos e a necessidade de consumo de complexos vitamínicos para o resto da vida. Também causa a perda de peso. Assim, cheguei a 65,5 kg depois da cirurgia e vou atingir com folga um dos meus objetivos de ano novo – o de pesar 68 kg. a maior parte do ano.

A vida em suspenso

De repente, não mais que de repente, na tela de um aparelho de ultrassom, algo franze o cenho do jovem médico. O paciente percebe a preocupação e escuta o comentário: o seu problema é um nódulo no pâncreas.

É o que basta para deixar a vida de uma pessoa em suspenso. A sensação é de perder o chão e o rumo. Tudo pode mover-se para qualquer lado, sem o mínimo de coerência. Os caminhos percorridos, as estradas planejadas para o futuro, o trabalho, a família, tudo pára e se encontra no mesmo lugar, muito próximo do vazio, do nada.